O perigo das moscas nas Indústrias
Para nós, seres humanos, o acesso as quantidades suficientes de alimentos seguros e nutritivos é fundamental para sustentar a vida e promover saúde. No entanto, devido a urbanização e as mudanças nos hábitos de vida das pessoas, cada vez mais tem aumentado o número de consumidores que compram alimentos industrializados, aumentando também a responsabilidade de produtores e manipuladores em garantir a segurança de seus produtos.
Um dos maiores problemas de saúde pública está relacionado com a ingestão de alimentos contaminados com microrganismos e metais pesados. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 200 doenças são causadas pela ingestão de alimentos com bactérias, vírus, parasitas, dentre outros, que se desenvolvem por práticas inadequadas de manipulação, matérias-primas de baixa qualidade e falta de higiene durante a preparação, além de equipamentos e estrutura operacional inadequados. Este tem sido um crescente problema de impacto socioeconômico, o qual sobrecarrega os sistemas de saúde e contribui significativamente para uma alta mortalidade por ano.
Um relatório do Banco Mundial de 2019, referente ao ônus econômico das doenças transmitidas por alimentos, indicou que a perda total de produtividade associada a estas doenças em países de baixa e média renda foi estimada em US$ 95,2 bilhões por ano e o custo anual do tratamento destas doenças foi estimado em US$ 15 bilhões.
As doenças transmitidas por alimentos são geralmente de natureza infecciosa ou tóxica. Todos os anos, estima-se que 600 milhões – quase 1 em cada 10 pessoas no mundo – adoecem após ingerir alimentos contaminados e 420.000 morrem principalmente por doenças gastrointestinais e diarreicas, além de outras graves que incluem insuficiência renal e hepática, distúrbios cerebrais e neurais, artrite reativa e câncer. As doenças que causam diarréia são um grande problema em todos os países do mundo, embora o fardo seja carregado desproporcionalmente por países de baixa-média renda, onde os mais afetados são as crianças menores de 5 anos, com 125.000 mortes por ano.
As principais doenças de origem alimentar incluem, de forma geral, sintomas como febre, dor de cabeça, náuseas, vômitos, dor abdominal e diarreia. Dentre os agentes causadores, destacam-se:
a. Bactérias: Salmonella, Campylobacter e Escherichia coli.
b. Vírus: Norovírus e da Hepatite A.
c. Parasitas: tênias Echinococcus spp ou Taenia spp, nematódeo Ascaris e protozoários Cryptosporidium, Entamoeba histolytica ou Giardia.
A contaminação dos alimentos e a transmissão das doenças podem ocorrem desde a etapa de produção e fabricação, passando pela entrega, até o consumo do alimento. Focando na cadeia produtiva, a contaminação pode ocorrer de várias formas, seja por fatores ambientais (incluindo poluição na água ou no ar), por falhas de armazenamento e processamentos ou pela presença de insetos praga nas indústrias. No caso dos insetos, estes constituem um grande risco, pois podem ampliar a disseminação de microrganismos patogênicos e comprometer a qualidade do alimento.
Dentre os insetos, a Musca domestica (Insecta: Diptera) é uma das pragas mais comuns, principalmente pela grande quantidade de matéria orgânica e água envolvida no processo de fabricação dos alimentos somadas a algumas das suas características biológicas: ser sinantrópica (adaptada a viver junto ao homem), endofílica (ser atraída para o interior de ambientes e permanecer em um determinado perímetro) e ter hábitos alimentares e reprodutivos que necessitam de matéria orgânica.
O principal recurso alimentar das larvas e adultos da M. domestica são as bactérias que se desenvolvem sobre a matéria orgânica. A quantidade e a qualidade do alimento consumido pelas larvas afetam a taxa de crescimento, o tempo de desenvolvimento, a sobrevivência, a fertilidade, a longevidade e a capacidade de competição entre adultos. Desta forma, locais com abundância de matéria orgânica, bactérias e outros microrganismos são extremamente atrativos a elas. Contudo, seu sucesso em estabelecer-se nestes locais depende da correlação com outros fatores igualmente importantes: os ambientais.
Os fatores como temperatura ambiental e umidade relativa do ar são extremamente importantes e influenciam diretamente no potencial biótico de uma população. Os insetos, por serem ectotérmicos (ou popularmente chamados de “animais de sangue frio” por dependerem da temperatura do ambiente para regular a do próprio corpo) os processos fisiológicos são sensíveis uma determinada faixa de temperatura, podendo ser acelerados ou inativados. No caso das moscas, dentro de uma faixa determinada para cada espécie, nota-se que quanto maior a temperatura, mais rápido ela atinge a maturidade sexual. Além disso, a elevação da temperatura também eleva a evaporação de água pelo exoesqueleto da mosca através da transpiração, o que faz aumentar a eficiência dos feromônios sexuais, tendo como consequência um aumento populacional. Em relação a umidade, esta influencia na quantidade de água no corpo dos insetos, a qual varia de 40 a 80%. Para as moscas, durante a postura e o desenvolvimento dos ovos, a umidade relativa é, em geral, o fator ambiental mais importante para a viabilidade de novas gerações, já que a baixa umidade pode levar ao ressecamento de ovos e a alta umidade pode inviabilizá-los, por proporcionar o surgimento de bactérias e fungos.
Espeficamente para M. domestica, alguns estudos feitos em indústrias alimentícias mostram uma tendência diretamente proporcional entre temperatura e abundância de moscas (aumentando a abundância conforme aumenta a temperatura) e inversamente proporcional entre umidade e abundância (diminuindo a abundância conforme aumenta a umidade no ar). Complementar a estes dados, quando comparou-se a abundância e as informações pluviométricas da região industrial, verificou-se uma tendência similar ao encontrado para umidade, ou seja, quanto maior o índice pluviométrico, menor é a quantidade de moscas adultas no ambiente.
Em relação as atividades antrópicas relacionadas a produção de alimentos, como o processamento animal em frigoríficos por exemplo, estas devem ser criteriosamente desenvolvidas, já que tem como consequência tem-se a geração de resíduos orgânicos e estes propiciam a atração, o desenvolvimento e proliferação das moscas. A presença das moscas nestas instalações constitui um risco potencial à saúde humana uma vez que, além do perigo da contaminação biológica, pode haver contaminações físicas, resultando na presença do corpo ou partes do corpo do inseto no produto ou nas embalagens produzidas.
A qualidade e a segurança dos alimentos são direitos dos consumidores em todo o mundo. O termo segurança alimentar refere-se à garantia de que o alimento produzido não apresenta ameaça à saúde do consumidor. No Brasil, o Ministério da Saúde elaborou Portarias e Resoluções, como a RDC 216 de 2004, os quais estabelecem critérios sanitários e orientações de Boas Práticas de Fabricação (BPF) na área de alimentos. As BPFs são um conjunto de procedimentos que devem ser adotados pelas indústrias alimentícias e pelos serviços de alimentação, a fim de garantir a qualidade higiênico-sanitária e a conformidade dos alimentos com os regulamentos técnicos. Estes procedimentos são empregados em produtos, processos, serviços e edificações, abrangendo desde a matéria-prima até o produto final. Segundo estas diretrizes, quanto ao controle de pragas, a indústria alimentícia deve evitar: presença de resíduos de alimentos, má higienização e sanitização das áreas de resíduos, água estagnada, acúmulo de materiais em desuso, acúmulo de pó, presença de danos estruturais (pisos, tetos e paredes) e portas abertas.
Pesquisas feitas em indústrias de alimentos, principalmente naquelas com manipulação animal, mostram que os setores onde há maior abundância de resíduos e matéria orgânica (como água residual e sangue) são mais atrativos às moscas por apresentarem condições favoráveis à sua reprodução e alimentação, podendo ter uma concentração média três vezes maior do que em outros setores que não geram resíduos (como depósitos de embalagens, vestiários e corredores de acesso). Desta forma, as indústrias de alimentos devem considerar como Pontos Críticos de Controle (PCC) para o manejo de pragas, as entradas das áreas produtivas, os locais de recebimento de matéria-prima, de expedição de produtos e as saídas de eliminação de resíduos, além da higienização dos utensílios e dos equipamentos. Os métodos de manejo devem ser utilizados em maior frequência nos setores críticos, contudo vale salientar que os locais com menor incidência de moscas não devem ser isentos de ações, pois a presença destas nesses setores também representa riscos, assim como as áreas externas no entorno das indústrias.
Visando um programa de manejo integrado de pragas (MIP) eficaz contra as moscas, um dos métodos de controle mais empregados é o químico, através de aplicações por pulverização, pincelamento ou iscagem, quando e nas situações em que é permitido. Outras maneiras de controlar populações de moscas envolvem o uso de sistemas de atração, como placas plásticas ou metálicas nas cores amarela ou vermelha, ou ainda, armadilhas luminosas cujo atrativo é o comprimento de onda da luz visível a elas. De forma adicional ao MIP, as previsões climáticas podem ser usadas como ferramentas úteis para traçar as estratégias de manejo de moscas em dias (ou semanas) específicos, em que a temperatura, umidade e precipitação estejam favoráveis a elas. Desta forma, o operador de controle de pragas pode planejar inspeções e avaliar a necessidade de medidas extras.
Para finalizar, os governos devem fazer da segurança alimentar uma prioridade de saúde pública, desenvolvendo políticas e estruturas regulatórias eficazes que garantam a sua aplicabilidade. Seguindo nesta linha, a OMS tem trabalhado na capacitação de manipuladores e consumidores para prevenir, detectar e gerenciar riscos de origem alimentar, sendo as doenças transmitidas por alimentos uma área prioritária no trabalho desenvolvido por esta Organização. As atividades da OMS incluem pesquisas sobre os perigos relacionados aos alimentos, programas de conscientização sobre doenças transmitidas por alimentos e promoção da segurança alimentar por meio de programas de saúde. Dentre as atividades, destaca-se o manual “Cinco chaves para uma alimentação mais segura”, o qual fornece dicas e diretrizes sobre como produzir, processar, manusear e consumir alimentos de forma a limitar a propagação e diminuir os riscos de contrair doenças transmitidas por alimentos.
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FONTE: INFORMATIVO TÉCNICO: IT.023/22 Empresa CMCONSULAB - Responsavel Técnica: Dra. CRISTIANE MATAVELLI